Relatório do Grupo de Alto Nível sobre a política audiovisual presidido pelo Comissário Marcelino Oreja

I.  OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL E O MODELO EUROPEU DE SOCIEDADE

I.1.  A importância dos meios de comunicação social para a sociedade e para a democracia na Europa

Este relatório baseia-se numa premissa que os seus autores consideram incontestável, nomeadamente, a de que uma sociedade moderna e democrática não pode existir sem meios de comunicação social que:

Contudo, a função dos meios de comunicação social ultrapassa a simples informação relativa a acontecimentos ou temas da nossa sociedade, ou a possibilidade concedida aos cidadãos e aos grupos de interesses de apresentarem os seus argumentos e pontos de vista: os meios de comunicação social desempenham também uma função educativa em termos sociais. Quer isto dizer que são amplamente responsáveis pela formação de conceitos (não apenas pela informação), convicções e mesmo da linguagem – quer visual e simbólica, quer verbal - que os cidadãos utilizam para dar sentido ao mundo em que vivem, assim como para interpretá-lo. Por conseguinte, os meios de comunicação social conseguem influenciar o que pensamos sobre nós mesmos e onde julgamos enquadrar-nos (ou não) no mundo em que vivemos. Por outras palavras, os meios de comunicação social têm igualmente uma importância fundamental na formação da nossa identidade cultural.

Neste contexto, a televisão (o meio audiovisual dominante) assume uma importância crucial. O europeu médio dedica 3 a 4 horas diárias à televisão, sendo este número ainda mais elevado tratando-se de crianças. Para a grande maioria dos europeus, trata-se da fonte principal de informação, de lazer e de cultura. A televisão não se limita a apresentar factos e imagens do mundo, fornecendo também conceitos e categorias – políticas, sociais, étnicas, geográficas, psicológicas, etc. - que se utilizam para tornar inteligíveis esses factos e imagens. Assim sendo, a televisão contribui para determinar não só aquilo que vemos do mundo, mas também como o vemos. Citando um estudo recente sobre a televisão :

A televisão "oferece um conjunto de fantasias, emoções e imagens fictícias mediante as quais construímos a nossa compreensão (ou falta de compreensão) de todas as componentes da sociedade que ultrapassam o nosso meio circundante. Influencia, consequentemente, não só a forma como nos situamos em face da comunidade na qual estamos enraizados, mas também a forma de entendermos essa comunidade – de facto, influencia a própria concepção da ideia de comunidade e do sentido que lhe atribuímos".1)

O sector audiovisual não é igual aos outros, não se limitando a produzir bens destinados a serem vendidos no mercado como quaisquer outros bens. Trata-se, na realidade, de um sector cultural por excelência, cujo "produto" possui uma natureza única e específica e cuja influência é fundamental para aquilo que os cidadãos conhecem, acreditam e sentem.

Este ponto de vista, segundo o qual os meios de comunicação social desempenham um papel educativo fundamental na nossa sociedade, não é novo nem controverso. Encontra-se reflectido nos sistemas jurídicos de todas as democracias da Europa Ocidental, os quais procuram garantir que, quer os media em geral, quer os media audiovisuais em especial, não sejam controlados por determinados interesses privados ou pelo Estado. Trata-se, nomeadamente, do reconhecimento do imenso poder que detêm os meios de comunicação social audiovisuais.

A abordagem europeia caracteriza-se tradicionalmente pelo equilíbrio. Partindo do reconhecimento da importância social, democrática, cultural e económica dos meios de comunicação social audiovisuais, os legisladores têm procurado alcançar um equilíbrio entre interesses divergentes. A título de exemplo, o direito à liberdade de expressão tem de ser contrabalançado com outros direitos, tais como o direito à protecção dos menores, a exclusão do racismo e a protecção da vida privada.

É igualmente importante que exista uma política de equilíbrio entre os interesses dos organismos de radiodifusão privados e os do serviço público. Na maioria dos países da Europa Ocidental, os canais privados só foram autorizados a partir da década de 80.

Embora alguns questionem a existência, ou mesmo o valor, de um espaço audiovisual europeu, é um facto que, desde a invenção da televisão, a grande maioria dos 15 Estados-Membros que actualmente integram a Comunidade seguiu, em grandes linhas, um conjunto de políticas semelhantes em matéria de radiodifusão. Isto não é surpreendente, uma vez que, apesar da sua grande diversidade, as sociedades europeias contemporâneas partilham determinados valores, tais como:

Apesar das inúmeras diferenças entre os mercados audiovisuais dos diferentes Estados-Membros, a abordagem comum da radiodifusão indica que estes mercados nacionais têm, todavia, muito em comum no que se refere a valores sociais e culturais e à experiência histórica. Se compararmos esta abordagem com a dos Estados Unidos, um dos maiores e mais competitivos mercados do mundo, verificamos que o ponto de partida dos europeus foi diferente: na Europa, nunca se partiu do pressuposto de que os sectores da radiodifusão e audiovisual deveriam ser encarados como um assunto meramente económico, nem de que o mercado garantiria de per se um serviço pluralista.

Não quer isto dizer que o legislador norte americano não tenha intervindo de forma decisiva no mercado sempre que o considerou necessário por razões económicas ou outros objectivos estratégicos – como se comprova pelas famosas "fin-syn rules" da década de 70, pela recente introdução de um sistema de avaliação de programas destinado à protecção de menores e pela política da comissão federal para a comunicação ("Federal Communication Commission"), que, apoiando-se na legislação, prevê uma transição rápida para um sistema inteiramente digital. Contudo, a abordagem europeia do sector audiovisual tem sistematicamente abrangido mais do que a simples necessidade de assegurar o funcionamento do mercado: a natureza específica do sector e a sua função social fundamental foram sempre reconhecidas pelos Governos europeus. Por conseguinte, independentemente de considerações de natureza meramente comercial, o objectivo de educar e de informar o telespectador assumiu sempre uma importância fundamental nas políticas europeias de radiodifusão.

Dados os avanços tecnológicos com que nos confrontamos - em especial, o advento da era digital - coloca-se a questão de saber se a abordagem europeia em relação à política audiovisual em geral e à radiodifusão em particular, terá de ser revista à luz dessa evolução e, em caso afirmativo, como proceder a essa revisão. O Grupo de Alto Nível procurou responder a esta questão mediante o presente relatório.


RECOMENDAÇÕES
  • O ponto de partida para qualquer análise da política relativa aos meios de comunicação social audiovisuais terá de passar pelo reconhecimento da importância específica que estes assumem nas nossas sociedades e da necessidade de assegurar um equilíbrio entre o livre jogo das forças de mercado e a protecção do interesse público geral.

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I.2. O desenvolvimento tecnológico e o seu impacto nos meios de comunicação social audiovisuais.

A história das civilizações está ligada à construção de redes, desde a rede romana de estradas, passando pelos portos fenícios no mediterrâneo e pelas redes europeias de canais até às linhas de caminho-de-ferro, aos transportes aéreos, às redes de electricidade, de telefone e de televisão. Todas estas redes proporcionaram ligações, quebraram barreiras, reduziram distâncias físicas e psicológicas e, sobretudo, permitiram o intercâmbio de bens, de serviços e de ideias. As redes de comunicação digital terão rapidamente consequências a nível económico e social difíceis de prever. Este novo contexto oferecerá muitos desafios e muitas oportunidades.

Mas o que se entende exactamente por "novo contexto digital"? Na sua origem encontra-se o facto de a tecnologia de transmissão digital permitir, através de múltiplas redes, a transmissão de uma quantidade de dados sem precedentes. No que se refere à radiodifusão, a escassez de espectro que caracteriza a radiodifusão analógica e limita o número disponível de canais, encontra-se em vias de extinção e acabará por ser substituída por uma abundância de espectro. As redes terrestres, de cabo e por satélite, transmitirão centenas de serviços digitais de rádio e de televisão, quer de acesso livre, quer de acesso pago. Estes serão acompanhados por outros serviços de valor acrescentado ou serviços de transacção (telecompras, serviços financeiros, e-mail, etc.).

Os desenvolvimentos tecnológicos conduzirão igualmente a uma fusão das plataformas de transmissão de imagem, texto, som e voz, tradicionalmente separadas. No mundo "em linha", a Internet permite desde já aos utilizadores o acesso a certos serviços de televisão com uma qualidade razoável. É possível que, nos próximos anos, a transmissão cada vez mais rápida de dados e a consequente melhoria da qualidade da imagem permitam a distribuição na Web de conteúdos de grande audiência, tais como filmes de longa metragem. Contudo, é no domínio da radiodifusão que existem maiores potencialidades para as empresas de comunicação europeias. É fundamental, quer de um ponto de vista económico, quer de um ponto de vista cultural, que a Europa aproveite o "contexto propício" que estes anos oferecem para fazer da radiodifusão digital um meio de comunicação social importante na Europa. Isto é essencial, caso os radiodifusores e produtores europeus queiram estar em condições de competir num mundo em que todos os produtos audiovisuais podem ser distribuídos simultaneamente através de qualquer plataforma.

Confrontado com a escolha entre centenas de canais, o espectador necessitará de instrumentos de navegação, tais como guias electrónicos de programação ["electronic programming guides" (EPG)] que o ajudem a orientar-se no labirinto de programas disponíveis. Para além disso, o espectador terá de ter alguma cultura em matéria de meios de comunicação social, isto é, terá de possuir um nível sofisticado de conhecimentos que lhe permita superar a sobrecarga de informação e orientar-se em função dos produtos audiovisuais que lhe interessam. Assim sendo, a educação e a formação são essenciais para que os europeus possam dominar com sucesso a nova era digital. Por conseguinte, os Governos nacionais deverão conceder mais importância à educação em matéria de meios de comunicação social nos programas escolares, desde os primeiros anos de aprendizagem.

A abundância de espectro não afectará apenas os hábitos do telespectador: terá igualmente um impacto significativo a nível do mercado. À medida que os canais se forem multiplicando, as quotas de audiência por canal fragmentar-se-ão inevitavelmente. As receitas de publicidade não serão suficientes para financiar muitos dos novos canais, uma vez que as suas quotas de audiência serão demasiado baixas. A maioria dos novos serviços terá, consequentemente, de ser financiada através do pagamento por visualização ("pay-per-view") e da televisão por assinatura ("pay-tv"). Embora a televisão de acesso livre vá continuar a existir, a digitalização proporcionará serviços adicionais e uma maior escolha para aqueles que queiram e possam pagá-la. Segundo um estudo efectuado pela Comissão Europeia, cerca de 48% das receitas totais no sector dos meios de comunicação social provirão, por volta do ano 2005, do consumo directo dos agregados familiares (contra 33% actualmente)2). O consumo crescente de serviços ligados aos meios de comunicação social, tais como a Internet, conduzirá a um aumento das despesas por família, o que coloca a questão de saber em que medida os novos serviços serão efectivamente acessíveis a toda a sociedade.

O mesmo estudo aponta para uma evolução provável positiva: o mercado audiovisual europeu não só é aquele que regista um crescimento mais rápido a nível mundial (a sua taxa de crescimento é muito superior à que se verifica nos Estados Unidos)3), como se afigura igualmente que os produtores europeus de programas obterão no futuro uma maior quota de receitas neste mercado em rápida expansão. A sua quota no total das receitas do sector deverá passar de 28% em 1995 para 30% em 2005, com um aumento de 55% das receitas durante esse período; permanecerão, contudo, numa posição consideravelmente minoritária nos seus mercados nacionais. Prevê-se que os produtos e os serviços inovadores, tais como a televisão interactiva e os serviços multimedia, contribuirão significativamente para este crescimento, não tanto por substituírem os produtos e serviços existentes, mas pelo facto de os complementarem. O aumento da quota de mercado dos produtores de programas europeus será provavelmente mais acentuado em sectores distintos do da televisão de acesso livre (cinema, vídeo, televisão por assinatura, televisão interactiva e serviços multimedia). Nestes sectores, dominados em grande medida por produtos americanos, a quota de mercado dos produtos europeus poderá aumentar de 13% em 1995 para 21% em 2005, sendo para isso apenas necessário manter a política actual.

O sector possui, consequentemente, um grande potencial de criação de emprego. De acordo com um documento recente da Comissão Europeia 4), o número de pessoas directamente empregadas nos sectores do cinema e da televisão na União Europeia em 1995 era de um milhão. Se a indústria audiovisual europeia conseguir satisfazer a nova procura, este número poderá duplicar. O potencial inerente ao sector audiovisual foi igualmente confirmado nos Estados Unidos. Um estudo publicado em Abril de 1998 sobre o "Impacto económico do sector do entretenimentor na Califórnia" indicou que o emprego no sector da produção de actividades de entretenimento aumentou 38% entre 1992 e 1996 – um ritmo sete vezes superior ao da economia californiana na sua totalidade5). O sector contava mais de 450 000 postos de trabalho (226 000 directos, os restantes indirectos). O estudo conclui que "a questão que se coloca actualmente é a de saber se a actividade económica futura que possa eventualmente resultar de tal crescimento se situará na Califórnia ou noutro lado. Um apoio contínuo das entidades públicas a favor da expansão do sector do entretenimento é essencial para que este continue a gerar postos de trabalho, rendimentos, receitas fiscais e outros benefícios económicos essenciais para a Califórnia".

Estas considerações assumem uma importância fundamental, devido à prioridade concedida ao mais alto nível à criação de emprego na União Europeia, conforme confirmado pela Cimeira do Luxemburgo sobre o emprego. Na sua comunicação relativa às políticas comunitárias a favor do emprego6), elaborada para o Conselho Europeu de Cardiff, a Comissão Europeia sublinhou a importância de aproveitar ao máximo as novas possibilidades proporcionadas pela digitalização, tendo insistido na necessidade de apoios públicos para facilitar o acesso ao financiamento e melhorar a formação neste sector.

É provável que outra consequência da tecnologia digital seja a de acentuar a tendência para a concentração no mercado audiovisual. As produções audiovisuais sempre foram dispendiosas, em especial as obras de ficção, sobretudo os filmes de longa metragem. A proliferação de canais verificada nos últimos anos é apenas um dos factores que conduziram ao aumento dos já elevados custos (este aspecto será analisado em pormenor na secção seguinte do presente relatório). O sector da produção audiovisual tem revelado uma tendência para a concentração, dadas essas importantes barreiras à entrada no mercado. Contudo, o fenómeno da convergência de redes está igualmente a conduzir à criação de economias de escala, ou seja, a tecnologia digital permite utilizar facilmente um mesmo conteúdo em numerosos formatos diferentes, abrindo um mercado mais amplo para aquilo que é basicamente o mesmo produto. Este facto está a dar origem a acordos e concentrações entre empresas que operavam até à data em diferentes sectores da economia, tais como os sectores da radiodifusão e das telecomunicações. Estes acordos e concentrações procuram beneficiar das economias de escala e evitar os altos custos de entrada no mercado de certos serviços audiovisuais novos, tais como a radiodifusão digital e o vídeo a pedido ("video-on-demand"). Mais uma vez, o objectivo é o equilíbrio. Por um lado, as empresas europeias necessitam de cooperar, de forma a transformarem-se em parceiros competitivos num mercado cada vez mais globalizado. Por outro lado, os abusos de posição dominante deverão ser evitados, quer por razões democráticas, quer por razões económicas. Contudo, ao aplicar o direito comunitário da concorrência, a Comissão deve estar preparada para tomar em conta as características especiais do sector audiovisual. Terá de encorajar de forma inequívoca e coerente os operadores que estão a desenvolver serviços de televisão digital, uma vez que sem os seus investimentos o mercado da televisão digital, de grande importância para a Europa, não poderá prosperar.


RECOMENDAÇÕES

  • É de importância fundamental que a Europa utilize o contexto propício que actualmente se lhe oferece para introduzir a radiodifusão digital (em todas as suas formas), preparando-se assim para a era da informação.
  • Para tal, os responsáveis pela execução da política europeia deverão incentivar energicamente o desenvolvimento, pelos operadores económicos, dos serviços de televisão digital.
  • A educação e a formação são essenciais para que os europeus consigam dominar com sucesso a nova era digital. Por conseguinte, os Governos nacionais deverão conceder mais importância à educação em matéria de meios de comunicação social nos programas escolares, desde os primeiros anos de aprendizagem.

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I.3. O impacto das novas tecnologias e a globalização dos mercados dos conteúdos audiovisuais.

Afirma-se frequentemente que o desaparecimento progressivo da escassez de espectro e a proliferação de canais de transmissão aumentará automaticamente as possibilidades de escolha do telespectador. Haverá, obviamente, uma possibilidade de escolha quantitativamente mais ampla da programação disponível para o telespectador. Contudo, a questão fundamental é a de saber se melhorará a qualidade, a variedade e a originalidade da programação. Uma questão ligada a esta é a de saber se a abundância de espectro e a proliferação de canais beneficiará efectivamente o sector europeu de produção.

Por outras palavras, a digitalização terá unicamente como consequência o aumento das redifusões de material de arquivo e de produtos importados a preço mais baixo?

Os preços dos direitos de transmissão televisiva dispararam nos últimos anos, na sequência da procura crescente de programas derivada da proliferação de canais. Entre 1990 e 1995, os preços das obras de ficção, séries, "sitcoms", longas metragens e documentários aumentou cerca de 5 % por ano em termos reais7). A cadeia de televisão norte-americana NBC ofereceu recentemente 13 milhões de dólares por cada episódio da ER, uma obra dramática que decorre num ambiente hospitalar e que é exibida no mundo inteiro: a NBC pagava anteriormente 2 milhões de dólares por episódio. Igualmente, no que se refere a programas desportivos, o preço pago recentemente pelos direitos de transmissão dos Campeonatos do Mundo de futebol de 2002 e de 2006 foi de 1 700 milhões de ecus, em comparação com os 241 milhões de ecus pagos pelos Mundiais de 1990, 1994 e 1998 8). Apenas as empresas mais poderosas e de maior dimensão, com uma posição forte no mercado, podem permitir-se pagar cifras de tal forma astronómicas. Os desenvolvimentos que se estão a produzir a este nível na Europa seguem de muito perto a experiência dos Estados Unidos.

O Grupo de Alto Nível corrobora a tese descrita no recente Livro Verde da Comissão relativo à convergência nos sectores das telecomunicações, dos meios de comunicação social e das tecnologias da informação 9), segundo a qual, em condições de abundância de espectro, o conteúdo determinará se as empresas europeias terão ou não um peso no futuro.

Os conteúdos de alta qualidade são limitados, assim como o é o talento. Para além disso, a ideia de que a globalização criará um mercado mais amplo, capaz de compensar os custos crescentes dos conteúdos, poderá revelar-se em grande medida errada, pelo menos a nível europeu. Grande parte dos produtos audiovisuais europeus reflecte e faz apelo a predilecções, interesses, acontecimentos, preferências culturais e à língua dos espectadores em cada país. A título de exemplo, ninguém fora da Alemanha assiste aos festejos do carnaval renano por televisão (embora estes festejos sejam actualmente financiados em grande medida através da venda de direitos de difusão e tenham ocupado este ano cerca de 124 horas de radiodifusão televisiva).

Isto aplica-se aos noticiários, aos programas de actualidade e ainda aos programas de lazer, educativos e desportivos. Paradoxalmente, tal é demonstrado pelas tendências registadas a nível da televisão internacional, que representa um sector importante de actividades. Os canais internacionais dispõem de uma quota de audiência considerável em, pelo menos, 9 países da Europa Ocidental (Áustria, Bélgica, Dinamarca, Suécia, Noruega, Irlanda, Luxemburgo, Suíça e Países Baixos). Contudo, para poderem competir com os canais nacionais, os radiodifusores não nacionais, têm "localizado" cada vez mais os seus conteúdos (exemplos disso são as janelas regionais da MTV Europa e as janelas suíças da Sat 1). Em contrapartida, a experiência dos canais que se baseiam numa programação amplamente europeia, tais como a Euronews, demonstra que este mercado é limitado. Hollywood, por outro lado, conseguiu criar "conteúdos" cuja popularidade é universal. Quer isto dizer que, na Europa, o fenómeno da globalização das redes é contrabalançado pela diversidade cultural e linguística dos conteúdos. A procura de material nacional, regional ou local continuará a ser uma característica fundamental do mercado dos conteúdos, assim como a procura de determinados produtos "globais" (por exemplo, filmes de grande sucesso).

Esta situação constitui simultaneamente um desafio e uma oportunidade para os produtores europeus. Os mercados audiovisuais europeus encontram-se tradicionalmente fragmentados devido à diversidade cultural e linguística. A abundância de canais originada pela televisão digital conduzirá a uma fragmentação ainda maior do mercado. Dados os enormes e crescentes custos de produção de conteúdos de alta qualidade, os consumidores terão de pagar preços de assinatura muito elevados; caso contrário, os radiodifusores não desejarão, ou, pura e simplesmente, não poderão, investir em conteúdos nacionais, regionais ou locais e preencherão a sua programação com material menos dispendioso, de arquivo ou importado. Quanto menor for a dimensão do mercado, maior será o risco de fracasso. Por exemplo, enquanto o amplo mercado de língua alemã parece ser capaz de manter uma grande oferta de obras de ficção para televisão produzidas localmente, nos mercados de dimensão média (por exemplo, a Itália ou a Espanha), isso acontece em muito menor grau e, no que se refere a mercados de pequena dimensão (por exemplo, a Bélgica), a co-produção é frequentemente a única solução viável.

A questão que se coloca é, portanto, a seguinte:

Como poderá a indústria de produção europeia responder, por um lado, aos desafios colocados pela tradicional fragmentação do mercado (causada pela diversidade cultural e linguística), e, por outro lado, à fragmentação adicional causada pela proliferação de canais, tirando simultaneamente o máximo partido do crescimento global do mercado?

Conforme anteriormente mencionado, o mercado dirigido a audiências caracterizadas pelo multiculturalismo e pelo multilinguismo revelou-se limitado. A título de exemplo, a Euronews, a Arte e a 3Sat emitem sobretudo para nichos de mercado (preferências multiculturais não satisfeitas de outra forma) e a experiência em matéria de transposição de formatos de magazines de um mercado europeu para outro demonstrou que tais formatos, mesmo tratando-se de temas universais como a natureza e as viagens, necessitam frequentemente de ser modificados e adaptados substancialmente aos gostos e preferências do novo mercado para obterem êxito. A programação pan-europeia ou internacional de sucesso complementa a programação nacional, regional ou local. Algumas empresas de produção, como a Endemol neerlandesa, obtiveram um grande êxito com o desenvolvimento de formatos de programas recreativos, séries e concursos susceptíveis de serem vendidos a radiodifusores de toda a Europa. É necessário incentivar a produção deste tipo de conteúdos, uma vez que contribuem para financiar as infra-estruturas de produção necessárias para manter produções de interesse exclusivamente local ou nacional.

Em resumo do Capítulo I, poderá afirmar-se que o advento da era digital coloca novos desafios e oferece novas oportunidades à produção audiovisual na Europa. O sucesso da indústria norte-americana demonstra a importância de uma estratégia de produção baseada na distribuição. Os maiores trunfos da Europa no domínio da distribuição são as suas empresas de radiodifusão.

A revolução digital oferecerá ao telespectador uma qualidade de radiodifusão superior, uma abundância de canais e toda uma gama de serviços acessórios, incluindo o acesso a partes ou à totalidade da Internet através de um descodificador que não custará mais do que umas centenas de euros. Os radiodifusores europeus devem aproveitar as oportunidades oferecidas pela era digital, sob pena de outros o fazerem no seu lugar; devem responder aos desafios que se lhes colocam, caso queiram continuar a contribuir para a manutenção de uma base sólida de produção local, capaz de fornecer conteúdos de interesse local, nacional e internacional. Apenas na Europa é possível produzir programas audiovisuais em línguas europeias, com jornalistas, apresentadores, actores, realizadores e desportistas europeus, sobre assuntos, acontecimentos e ideias europeus.


RECOMENDAÇÕES

  • O advento da era digital não eliminará a necessidade de continuar a apoiar a produção europeia.
  • Se "o conteúdo é rei", a distribuição continua a ser a chave do reino.
  • Consequentemente, as políticas destinadas a apoiar a produção europeia devem reconhecer o papel fundamental que os radiodifusores podem desempenhar na maximização das oportunidades oferecidas pelo advento da era digital.

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NOTAS AO CAPÍTULO I

1)  "Broadcasting, Society and Policy in the Multimedia Age, COPY (University of Luton Press, 1997) , p. 28.  [ volta ]

2)  NORCONTEL Ltd., "Economic Implications of New Communication Technologies on the Audio Visual Markets", relatório final, 15 de Abril de 1997.  [ volta ]

3)  Segundo as estimativas do estudo da NORCONTEL, as receitas globais do sector deverão aumentar 69% no período compreendido entre 1995 e 2005; a proporção dessas receitas imputável ao consumo directo por parte dos agregados familiares deverá aumentar de 33% para 48 %.  [ volta ]

4)  Documento de trabalho da Comissão Sec(1998)837 de 14/5/1998.   [ volta ]

5"State of the Industry: the Economic Impact of the Entertainment Industry on California", Motion Picture Association of America (M.P.A.), Abril de 1998.   [ volta ]

6)  COM(1998)354 de 3/6/1998.  [ volta ]

7Ibid, p. 12.  [ volta ]

8"Les Echos", 16 de Junho de 1998.   [ volta ]

9)  COM (97) 623.  [ volta ]


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